CIRANDA  DE  HIPOCRISIAS

MIGUEL REALE

 

                        Já é sabido que a hipocrisia domina as épocas eleitorais, visando alguns candidatos transferir a terceiros a responsabilidade por resultados de medidas políticas ou econômicas de que também eles participaram. Foi o que aconteceu ao longo do mês de setembro em curso, sendo feitas críticas ao atual governo por pessoas que, durante quase oito anos, foram aliadas do presidente Fernando Henrique Cardoso, apoiando sem ressalva as suas decisões.

                   Breve análise do atual cenário político é bastante para comprovar o que estou afirmando, com a demonstração de que está havendo falta de sinceridade por parte dos conglomerados partidários em conflito, ao tornarem o atual governo alvo de suas críticas.

                   É preciso, antes de mais nada, reconhecer que a Constituição de 1988, em matéria de “sistema de poder”, ou, por outras palavras, de “forma de governo”, ficou em suspenso, não optando claramente pelo presidencialismo ou pelo parlamentarismo. O que existe é uma mistura de um e de outro, com atribuições ao Legislativo e ao Executivo que se conflitam. Essa falta de definição, acrescida da nossa carência de partidos de caráter programático, obriga o Chefe da Nação a recorrer a “composições de forças heterogêneas” a fim de poder ter apoio na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

                   Isso quer dizer que, durante quase 8 anos, as decisões tomadas nunca foram apenas do presidente Fernando Henrique Cardoso, mas sempre dele e do “grupo político” que lhe dava apoio. Em termos de legendas, esse “centro de poder” era formado por políticos pertencentes ao PSDB, ao PFL, ao PMDB (embora dividido), ao PPB e ao PTB.

                   Desse modo, quando o candidato Ciro Gomes ataca violentamente FHC, está atacando, implicitamente, o seu atual aliado mais forte, o PFL, por sinal a agremiação mais propensa a dar respaldo à política governamental anteriormente vigente. O mesmo se diga com relação ao PTB, de maneira que só por artifício se poderá afirmar que a candidatura de Ciro representa uma “frente trabalhista”.

                   Entra pelos olhos que o PFL só veio a formar ao lado de Ciro depois do fracasso da candidatura da ex governadora do Maranhão, Roseana Sarney, após episódios comprometedores atribuídos,  sem motivo plausível, ao candidato José Serra...

                   O mesmo se diga da corrente que sustenta o nome de Lula da Silva, cujo vice é um senador que nunca hostilizou a Fernando Henrique Cardoso, pertencendo ao Partido Liberal, isto é, àquele que, em razão de seu programa, nunca poderia figurar como  principal aliado do PT. Este fato, aliás, de um Partido  Liberal figurar na vanguarda de uma candidatura que sempre se distinguiu por seu esquerdismo socialista, é bem o retrato de nossa falta de educação e institucionalização políticas.

                   Quanto a Anthony Garotinho, até agora não se conseguiu definir com que título doutrinário ele se apresenta, entre uma opção religioso-política evangélica e uma atitude  anti-capitalista extremada.

                   Finalmente, temos o candidato José Serra, que, após certas vacilações, acabou se firmando como candidato governamental, no sentido de que é seu propósito dar continuidade à política fernandista, muito embora com certa correção de rota, menos apegada à linha monetarista, digamos assim, para caracterizar o predomínio das questões de ordem  financeira, dando ele mais atenção à problemática social. Quanto à política externa e o acordo com o FMI, Serra tem uma nítida posição de continuidade.

                   Traçado esse cenário político, já estamos em condição de verificar que o eleitor, na escolha de seus candidatos, não está perante um quadro ideológico e nem mesmo partidário, mas sim perante as qualidades e defeitos pessoais dos candidatos e de seus aliados, inclusive no que se refere ao crédito a ser dado às acusações e promessas formuladas.

                   Nesta hora de opção eleitoral, grande peso deve ser dado ao passado de cada candidato e à sua “entourage”, ou círculo de pessoas que o promovem, para podermos aquilatar a sinceridade e a  confiança que eles merecem.

                   Estamos, com efeito, numa época em que os programas de governo vem carregados de elementos táticos, tendo-se apenas em vista conquista do voto, com a esperança de, depois, no momento da realização do prometido, encontrar sempre motivos que justifiquem tomadas de posição contrárias.

                   Isto quer dizer que, salvo no que se refere às grandes linhas ideológicas – geralmente indicadas com as palavras esquerda, direita e centro – não serão as diferenças partidárias que irão influir nas opções dos eleitores, tão confusas são as posições teóricas ou práticas dos grupos em conflito, mas sim a  figura do candidato, com as suas qualidades pessoais, com o seu passado de coerência política e sobretudo com o conhecimento e a experiência que já tenham tido da coisa pública.

                   Note-se que não me refiro apenas aos candidatos à Presidência da República, mas aos postulantes de votos em todas as esferas eleitorais, sobretudo no concernente ao exercício do cargo de Governador do Estado e a de Senador.

                   Bem longe de mim a idéia de que dou pouco apreço às funções de deputados federais e estaduais. Ao contrário, se pudesse fazer uma sugestão final, neste intrincado pleito a ser logo afrontado, será no sentido do voto integral coerente, isto é, atribuído a pessoas que não se contraponham, no tocante à realização de seu programa de governo. Sem essa orientação, o Presidente ou o Governador ficarão às voltas com minorias parlamentares, incapazes de dar sustento às suas decisões políticas ou administrativas.

                   É a falta de congruência do Executivo com o Legislativo que leva, inevitavelmente, à política dos conchavos, e não a acordos baseados exclusivamente em  idéias e interesses da nação.

                                                                                              28/09/2002